terça-feira, 27 de outubro de 2009

Crônica: uma catarse


São Paulo sob o olhar crítico de um filho adotivo

Lembra-te, São Paulo, quando pousei os pés pela primeira vez em teu solo? Lembra-te de como me recepcionaste? Imbuída de um espírito patriótico cercou-me de "milicos" numa calçada em frente a antiga rodoviária, situada próxima a Estação Júlio Prestes, na qual eu recém desembarcara, e os fez, em coro, exigirem que eu despisse a calça do exército brasileiro que trajava - diga-se de passagem, com certo orgulho de rebeldia comum aos jovens da década de 70 -, mas não com desrespeito à instituição. Ali, diante dos transeuntes curiosos, um tanto acuado no interior de um círculo formado por jovens como eu, despi, consntragido, induzido pelos argumentos incontestávelmente agressivos, a calça verde oliva, entregando-a ao mais graduado entre os soldados. Em seguida vesti outra calça e sob censuras e recomendações de que não deveria tratar com vulgaridade o símbolo e o patrimônio do Exército Brasileiro, fui liberado sem mais penalidades.
Então, neste momento e sob o efeito desse desconforto, olhei-te longamente, São Paulo, e vislumbrei pedaços de seu céu acima do topo de seus arranha-céus. Me surpreendi com tuas ruas extremamente movimentadas e verifiquei que um tom acinzentado prevalecia sobre todas as outras cores ao redor, tornando-as decepcionantemente pálidas. Para qualquer lado que me virasse lá estava o referido tom cinza, em suas infinitas gradações, a dominar toda a paisagem urbana. Era essa a cor da sua pele, revelada num choque visual?
Eu vinha do Paraná e rumava em direção ao Rio de Janeiro e tu serias apenas uma estação intermediária nesse trajeto; no dia seguinte retomaria a viagem. Recordava-me nesse instante, de um outro dia no passado quando te vi pela primeira vez, também em trânsito, do interior de um ônibus, rodando por tuas ruas entre teus edifícios, e só o que ficara impresso na minha mente juvenil fora a tua atmosfera escura e cinzenta. Olhei espantado para tuas torres pontiagudas e convergentes apontando para o céu e cerrando-o como se quisessem mesmo barrar sua presença. Uma garoa fina contribuía para o estabelecimento de uma atmosfera sombria. Em minha memória ficou gravada essa tua imagem: uma cidade constituída de desfiladeiros e transitada por zumbis apressados. Senti alívio - confesso-o - por não precisarmos descer do ônibus e uma reconfortante alegria dominou-me completamente quando atingimos a Rodovia Castelo Branco e pude vislumbrar novamente o céu aberto e todos os seus horizontes. Nesse dia eu retornava para casa após uma viagem que incluíra uma estadia no Rio de Janeiro. Esta cidade, com amplos horizontes, contrastava com a ausência de espaço em ti verificada. Mas, ironicamente, apesar de ter estado em muitos lugares interessantes nestas viagens, o que permaneceu encravado em minha memória foi justamente o teu perfil. Foi assim que a nossa relação teve início: enquanto revelava sua indumentária sombria e seu caráter hostil, eu apenas buscava me manter o mais distante possível de sua influência perturbadora.
De volta do Rio de Janeiro nesta viagem contemporânea, hospedei-me temporariamente na casa de uma tia, situada na Vila Nova York - um bairro em sua periferia. Arrumei um emprego de vendedor de carnê do "Baú da Felicidade", empresa de propriedade de sua mais folclórica personalidade: Silvio Santos. Através deste emprego, São Paulo, eu conheci as tuas profundezas e os teus cantos mais recônditos; tuas ruas íngremes e teus becos desolados; teus cortiços e vilas, vielas e avenidas. Deparei-me com tua gente dependurada nos topos dos morros, fincadas nas tuas encostas; admirei tuas mansões e me deprimi com tuas favelas, córregos e riachos fétidos - verdadeiros depósitos de lixo: fábricas mesmo de doenças e viveiro de ratos. Compreendi o desejo desesperado de fuga da miséria de teus excluídos, representado no acalanto de sonhos repletos de promessas não cumpridas.
Ao revelar-se dessa maneira, o que esperava de um sujeito incauto como eu? Admiração ou repulsa? Hoje sei que não esperava nada; apenas desejava se revelar sem retoques para que pudesse ser compreendida e aceita, se possível, exatamente como é. E assim é tu, São Paulo: um monstro constituído de cimento, aço, vidro e asfalto; de tamanho incomensurável, estendendo-se, sem piedade, sobre a superfície desse chão. Constituí-se, a bem da verdade, num oásis de características próprias, nutrindo - embora de forma distinta - os viajantes que em teu solo buscam alento. És consciênte do quanto o teu temperamento é inconstante? Sabe o quanto nos afeta essas tuas mudanças repentinas de humor? Quando verte tuas lágrimas teus rios transbordam e quase nos afogam em caudalosas torrentes; quando o calor de tuas paixões irrompem à superfície, incinera seus edifícios e todos os que lá habitam ou labutam; quando estás apressada no trânsito atropela e mata sem piedade quem encontra pela frente; e na sua ânsia por justiça social toma de assalto as avenidas e praças com suas passeatas e clama, enfurecida, ostentando cartazes e gritando slogans com a cara pintada, pelas mudanças que exige. Até despencastes mais de uma vez dos céus esborrachando-se sobre seu duro solo, cuspindo para fora os corpos carbonizados daqueles que confiaram na segurança de seus vôos.
Seus contrastes são tão imensos quanto a sua extesão territorial, pois eis que desfila linda e faceira, vestida em trajes de corte preciso, feito sob medida em tecidos nobres, pelos bairros elegantes e recobre-se de farrapos nas favelas. Pretende-se culta e educada nos Jardins e vomita ignorância na periferia. Com uma mão distribui alento a quem dele necessita - pelas ruas e através de instituições voltadas para a filantropia -, e com a outra subtrai, com o uso da violência, os pertences - quando não a vida - daqueles que engrossarão as estatísticas policiais. Como mãe não se constitui num exemplo a ser imitada: ampara e encaminha algumas de suas crianças deixando outras entregues à própria sorte. Ouvimos diariamente no noticiário como as empilha nas casas de recuperação. Vemo-las perambulando pelas ruas e praças do centro com os narizes enfiados em sacos plásticos cheirando cola e entorpecendo suas mentes infantis de maneira irreversível. Vemo-las também com as mãos enfiadas nos bolsos dos idosos a lhes subtrair, como animais raivosos num ambiente inóspito e hostil, o substrato para a sua sobrevivência. Tens consciência de todos os teus atos, São Paulo? Estou sendo sarcástico demais? Deveria ser menos rigoroso da definição de sua personalidade? Não, não creio. Devo acrescentar, porém que tenho plena consciência de seus incontáveis esforços para oferecer-se melhor para os que insistem em ti confiar e permanecer sob sua guarda. Sei que sopra migalhas de sua fartura em direção à periferia para onde escorraça aqueles que tu rejeita, menos para socorrê-los do que para mantê-los convenientemente afastados e disponíveis aos seus anseios de progresso.
Em teu seio conheci a Liberdade; vaguei de um lado a outro de sua geografia sem obrigar-me a fazer nenhuma escolha: Pinheiros, Vila Maria, Vila Formosa, Jardim Bonfigliolli, Cerqueira Cézar, Vila Mariana, Santo Amaro, Santana, Interlagos, Pedreira. Em teu seio sorvi o néctar da independência; trabalhei sob tuas regras e condições sem requerer privilégios e não me resignei quando me estendestes teus grilhões: esses mesmos que reserva aos que de ti dependem. Em ti me firmei como homem compondo com pedaços de sua carne a matéria de meu próprio corpo e mente. Habitei teu, por vezes, frio e indiferente coração, e excursionei muitas vezes em teu cérebro e lá me fartei da luz que emana de teus sábios, dissipando as trevas que me impediam o conhecimento. Naveguei em tuas artérias incansavelmente e assim, como passageiro inusitado, através das janelas das lotações, desvendei os mistérios contidos em tua estrutura corpórea. Constituiu-se para mim um deleite apreciar tuas linhas arquitetônicas, tuas formas inovadoras, teu poder de auto-regeneração em sua metamorfose constante.
Que desconforto psicológico acarreta deparar-me com milhares de faces humanas num dia e jamais revê-las num outro. Quantos olhos tu possui metrópole, e quantos desses se comprazem comigo, me provocando comoção? Será essa imensa massa humana que se acotovela no metrô e lotações; nos milhões de automóveis com sua buzinas impertinentes que atravancam ruas e avenidas num arrastar-se contraditório, dadas as potências de seus motores? E quanto mais anos acumula, São Paulo, mais vigor ostenta. Realizou-se como a mais importante cidade do país; a mais rica, a maior renda per capita, o maior parque industrial, o maior centro financeiro da América Latina... E agregado a esses títulos, herdou outros menos admiráveis: títulos que trazem acoplados a violência, estatísticas demograficas nada elogiáveis, poluição generalizada, catástrofes imensuráveis, tragédias inexplicáveis, corrupção incrustrada, desemprego, assassinatos, atropelamentos, sequestros, assaltos, pobreza, miséria, fome, transporte ineficiente, déficit habitacional, lastimável condição dos serviços públicos, de sáude, segurança, infra-extrutura...
Entre idas e vindas findei por estabelecer um vínculo afetivo e duradouro contigo. Teus argumentos foram por demais persuasivos não me permitindo contra-argumentar. Sua sedução se consolidou ao oferecer-me possibilidades de crescimento particular. Sei que promete muito, como qualquer um de seus políticos na ânsia pelo voto, mas distintamente destes, cumpre tuas promessas àqueles que se empenham em seus objetivos. Mas estes são tantos que tens, obrigatoriamente, que garimpar entre os melhores.
E eu aqui, São Paulo, tratando-a como criatura feminina. Será porque é uma metrópole - uma imensa matrona, gorda e pançuda -, que têm a pretensão de prover todas as nossas necessidades? Será porque a defino como mãe: essa senhora casta, carinhosa e compreensível que perdoa, sem reservas, todos os nossos deslizes e nossas fraquezas? Ou será pai? Como o santo de quem emprestou o nome e que é considerado como um dos fundadores de uma religião?
Será pai, porventura, de alguma doutrina ou metodologia? Sei que em teu seio comporta, com elogiável mediação pacífica, todas as religiões do mundo. Mas creio particularmente que não tens a pretensão de enunciar verdades universais incontestáveis, visto que vive permanentemente colocando-as em confronto para que possam, através desse processo, extrair o supra-sumo de suas inferências. Tua realidade - esse seu aspecto que Caetano tão bem explicitou em sua famosa canção "Sampa" -, não pode ser considerado como um dogma irrefutável; é, antes, um aspecto negativo a ser combatido, vencido e transformado segundo os interesses gerais, mesmo que essa atitude revolucionária vá contra as ideologias das classes dominantes. Mas tu és mesmo feminina e masculina: figura incontestavelmente hermafrodita. Tu és um objeto e não uma deusa da materialidade, apesar de tê-la considerado como tal. É massa bruta, mineral e orgânica, a ser moldada incansavelmente pelas mãos de algum requintado artesão. É o pai que não tive e a mãe que se absteve da sua responsabilidade pelo menino que tu moldaste homem. Considera-me filho ingrato ao apontar mais seus defeitos e menos suas qualidades? Vai agora recusar-me, por isso, tuas fartas tetas à minha boca sedenta como tantas vezes o fez?
São Paulo, meu pai e minha mãe, obrigado pelo berço e pelo seio; pela fumaça negra, fedorenta e impregnante que exalas e que eu tenho que respirar; pelas distâncias físicas, imensuráveis, que tenho que transpor; pela riqueza e variedade dos alimentos que aqui aportam oriundos de todo o país; pela beleza irresitível de suas mulheres, por sua coragem e sentido de independência; pela sua artquitetura arrojada; pela imponência de seus monumentos; pela água escassa de seus reservatórios; pelas escolas suburbanas que tentam minimizar as diferenças entre suas classes sociais; pelos políticos corruptos que não hesitam em lesar vosso patrimônio; pela excelência de vossos intelectuais; pelo talento inquestionável de seus artistas; pela truculência de alguns de seus policiais; pela competência, honestidade e dedicação dos demais; pelos estragos das anacondas e seus filhotes; pela câmara de vossos vereadores que legislam quase sempre em causa própria e pelos que, nesta classe, vos defendem destes; pelo sangue esparramado no asfalto, nas escolas, nos ônibus, no metrô, nos Bancos, nas empresas, no trânsito...; pela morte cuspida das miras certeiras ds sicários; pelas balas perdidas que fatalmente encontram destinatários; pelos amigos que fiz...
Obrigado São Paulo, pai, mãe, irmão, amigo. Obrigado célebre desconhecido, por me receber e permitir que eu sufrua tudo o que venha conquistar. Náufrago, conduzido por águas resolutas aportei em suas margens. Eu, ser temporário, parabenizo vossa eternidade nesses passageiros 450 anos. Feliz Aniversário, Metrópole. Um dia ainda será como as maiores e mais idosas cidades do mundo e ostentarás - esse é o meu mais sincero voto - títulos que revelem tua tão esperada vitória sobre os males que a afligem neste momento em que redijo essa missiva.
Hoje sei que naquele dia perdido no tempo e na memória, aqueles jovens fardados, ao me constragerem quando me obrigaram a trocar a calça que trajava com o orgulho de um jovem rebelde, simbolizavam, à sua maneira, a exigência e o rigor de uma disciplina que futuramente eu adotaria - e traduziria como prudência -, como fundamental para uma convivência pacífica contigo. Sempre soube do que é capaz, São Paulo. Por isso nunca lhe cutuquei com vara curta. É fundamental conhecer-te bem para acorrermos ao teu abraço quando por isso clamas e reconhecer o momento certo de afastar-se quando te revelas zangada, a fim de evitar teus sopapos.
Sei que deixei de falar de muitas de tuas características, mas, sabes bem, é culpa tua mesmo; desse teu tamanho descomunal, que um mortal comum como eu não consegue abranger. Pois, veja só, quando acordamos na manhã seguinte, descobrimos que não dormistes apenas para trabalhar mais e continuar, ininterruptamente, a crescer, como se o seu tamanho atual não fosse suficiente para os seus insondáveis objetivos, e então revemos, nesse seu processo, um dos mais característicos traços de tua personalidade que findamos por incorporar: crescer sempre, sem limites, na direção de seus propósitos. Ave, São Paulo.


Crônica escrita na ocasião da comemoração dos 450 anos da cidade.

Um comentário:

  1. Grande e nobre irmão: Vejo este seu primeiro lamento nesta crônica um tanto melancólica e depressiva, assim como este poema de Augusto dos Anjos traduzidos em agonia sob forma de palavras altamente latentes e contundentes.
    Forte abraço
    Rubens

    "Vês! Ninguém assistiu ao formidável
    Enterro de tua última quimera.
    Somente a ingratidão, esta pantera,
    Foi tua companheira inseparável!

    Acostuma-te à lama que te espera!
    O Homem, que, nesta terra miserável,
    Mora, entre feras, sente inevitável
    Necessidade de também ser fera.

    Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
    O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
    A mão que afaga é a mesma que apedreja.

    Se alguém causa inda pena a tua chaga,
    Apedreja essa mão que te afaga,
    Escarra nessa boca que te beija!"

    Augusto dos Anjos

    ResponderExcluir