domingo, 11 de outubro de 2009

FICÇÃO

Nosferatu. Imagem extraída do filme homônimo do diretor alemão F.W. Murnau

O Lamento de um Vampiro

O sol enfim se põe.
A luz do dia enfim se apaga; essa luz de final de tarde não me incomoda, embora aprecie mais as sombras. Neste instante, somente a iluminar a cidade as luzes amarelas e pálidas projetadas de luminárias ferrenhamente agarradas a postes perfilados ao longo das avenidas ainda atulhadas de almas vazias, às carreiras para suas tocas e esconderijos; vivem sempre apressadas essas almas desnorteadas. Poderia dizer que os edifícios que nos circundam são seus templos, embora prefira considerá-los túmulos que não lhes proporcionam o descanso que anseiam, isto é, o descanso eterno. Apresentam-se também como celas que os encarceram, como se estes fossem prisioneiros a espera do cadafalso. Estas luzes também não ofendem minha natureza bestial, não me torturam e não ofuscam meus olhos acostumados às trevas. O que pretende esse homem apressado? Para onde corre? Pobres diabos que não encontram razão além de futilidades para justificarem suas existências vazias de significados. Nem mesmo seu sangue me interessa mais; nenhuma dessas gotas me aguça mais o apetite. Eu que já me fartei nele, não quero mais esse sangue medonho correndo em minhas veias. Eu não quero mais experimentar o horror que macula a natureza primitiva de suas almas, agora permanentemente atormentadas - mesmo que suas faces algumas vezes se apresentem até sorridentes ou que expressem, vez em quando, uma relativa e momentânea satisfação. A verdade é que, na maioria das vezes, o que testemunho é que estão sempre impassíveis, mantendo uma postura indiferente a tudo que os rodeia, e estranhamente distantes de si mesmos, como se não suportassem sua própria presença. Mas, mesmo assim eu tenho sede. Mas sede de sangue puro, sangue quente, sangue palpitante de vida, sangue de um humano verdadeiro, de um humano livre de todas as contingências que atormentam estes espectros que visualizo dominado pelo asco; um humano que não se permite corromper, um rebelde por excelência. Bendito sangue que me saciará essa sede insana e perpétua, angustiante como um intenso e fatal raio de sol. Raro sangue - razão mesma de minha mórbida existência. O que vislumbro caminhando ao meu redor são apenas animais em sua luta frenética pela sobrevivência, dominados pelo medo, pelos limites que auto-impõem. Que sangue é esse destituído de substância e que, no entanto, corre por estas veias atrofiadas?
Se não me mantenho constantemente atento me atropelam, esbarram em mim como se eu não existisse, não estivesse aqui e agora; que não caminhasse entre eles. Afastem-se demônios malditos, com suas idiossincrasias, seus temores incontroláveis, sua ganância, sua hipocrisia e seu exacerbado egoísmo. Temo ser contaminado por um simples toque, um esbarrão; com seus olhares indiferentes que mais parecem me atravessar o corpo que notar minha presença. Não me percebem entre vós, criaturas insanas? Débeis farrapos humanos. Há!há!há!há!há! O que pensam que são, vis criaturas? Se não conhecesse o mal que carregam em seu interior diria até que se julgam portadores da natureza de um rei, do sentimento de um herói, de um virtuoso... de um homem - um verdadeiro. Será que suspeitam o que seja um homem verdadeiro? Estou plenamente cônscio de que ignoram completamente a que me refiro. Não seriam capazes de tamanha proeza, pois há muito perderam a referência. O último verdadeiro homem foi trucidado, assim como todos os anteriores, pela sua hipocrisia; pelo seu medo incompreensivel daqueles que verdadeiramente aspiram à grandeza - não essa grandeza que confundes permanentemente com acúmulo de posses, mas aquela que eleva o espírito a uma altitude impossível de ser mensurada; pela sua falsa segurança, a segurança daquele que se encontra seguro em sua torre de marfim; pela sua frágil independência - esta tão violada e por tanto tempo que não acredito que ainda a julgue meritória; pela sua óbvia covardia em assumir-se responsável por si mesmo - condição que o aproximaria muitíssimo desse "homem" a que refiro; seu falso moralismo que censura tudo o que considera fonte de liberdade, pois a teme como o diabo teme a cruz e eu a luz; por todas essas ações violentas desencadeadas pela impotência diante de seus mais nobres instintos reprimidos. Oh! homo sapiens, homem habilidoso, agora, decadente, aguarda passivo pela calamidade que irá redimir sua culpa milenar. Imagino a satisfação que experimentará ao ceder sua jugular aos meus afiados e sedentos caninos.
Tenho sede. Como vou saciá-la nesta vastidão de sangue imprestável? Como pode um vampiro viver assim, em meio a tanta fartura sem qualidade? É como morrer de sede cercado pelas águas de um oceano. Devo abdicar de meus princípios e morder um desses pescoços? Não, seria a temível decadência; o temor de ver-me contaminado é maior que a sede que me corrói as entranhas. Devo caminhar entre eles, talvez o encontre vindo em minha direção, quem sabe virando a próxima esquina. Pode ser que ele viva entre estes seres desprezíveis. Afinal, sua natureza é pura o bastante para evitar a contaminação com a proximidade ou mistura com estas criaturas. Talvez ele ainda exista - esse humano raro. Se estou certo quanto a essa expectativa, então ele ainda há de redimir essa espécie de suas incoerências.
Onde se encontra o sangue puro desse humano que irá saciar totalmente minha sede? Caminha entre nós por estas ruas apinhadas? Mistura-se à ralé? Saberei reconhecê-lo entre a escória? Sei que ele não é dado a disfarces intencionais. Tal qual o camaleão, adota, espontâneamente, a cor local. É sábio o suficiente para não atrair a atenção geral à si. É certo que seus olhos firmes e sua atitude resoluta o distinga dos demais quando sob o crivo de um olhar treinado como o meu. Então, se o encontrar, devo me fartar com seu sangue ou devo poupá-lo em admiração e respeito a esse espécime? Devo mesmo sacrificá-lo objetivando apenas saciar temporariamente esta minha sede permanente? Devo eu também destruí-lo como outrora todos estes malditos sobreviventes fizeram em passados remotos e recentes contradizendo toda a admiração que tenho por ele? Quando encontrá-lo serei capaz de fitá-lo nos olhos, tamanha deve ser a intensidade da luz que emana? Tenho poder ou dignidade suficiente para tal façanha; eu, um animal predador plenamente dependente deste meu vasto e repugnante rebanho? Deverei reverenciá-lo como a um rei? No que ele se difere de mim?

Oh, insensatos. O clamor que ouço proveniente de seus lamentos é música para meus ouvidos. Sinto prazer em apreciar sua dor. Estes que circulam ao meu redor não são melhores que eu, terminantemente. Não me venham com críticas ou com censuras. Não somos absolutamente iguais. Nem o desejo que sejamos; longe de mim tal ideia. Mesmo que as trevas sejam a condição irrefutável para minha existência eterna. É preferível a danação por entre escombros e subterrâneos, sempre sorrateiro, atento aos menores movimentos, na eterna vigilância dessa existência medíocre, do que ser considerado um membro dessa ralé que rasteja pela sarjeta de sua própria insignificância.
Eis o dilema de um vampiro contemporâneo: a escassez de sangue de qualidade, de sangue digno de ser sugado. De um sangue que proporcione prazer e que alimente e fortaleça, ao mesmo tempo, o sugador. O que posso esperar de um sangue contaminado pelo medo, pela indolência, pelo remorso, pela apatia e pela covardia? Nada! Nada! O pretensioso grande arquiteto de si mesmo resigna-se à condição de mero coadjuvante de seu destino. Este arquiteto és tu, ignóbil criatura, que caminha ao meu lado, orgulhosamente amparado em duas pernas, neste sórdido tempo. Sua sorte há muito foi lançada pelos seus anseios desmedidos, agora amarga sua fútil existência. Sem saber, mais uma vez, ao certo, que rumo tomar, segue com o rebanho, resignado, para o inevitável abate. Oh! Deus das trevas, eu te imploro pelo sangue de um humano puro. Este é o último desejo de uma criatura que anseia ardentemente pousar seus cansados olhos mais uma vez em tão portentosa personalidade. É só o que desejo, embora saiba que a recusa em tragar esse sangue impuro que se apresenta abundante nessas frágeis presas, precipita meu próprio fim. Mas, de que adianta para uma criatura como eu insistir num tempo sórdido, entre sórdidos?

Gilberto Lins
Primavera de 2008

2 comentários:

  1. Uau! O que será que esse vampiro busca então?
    Talvez tornar-se simplesmente humano entre os humanos?

    ResponderExcluir
  2. Elizabeth, creio que o que o 'suposto' vampiro não deseja é se tornar esse ser humano comum que corre enganosamente no encalço de sua sobrevivência negando a existência de um ser muito poderoso dentro de si mesmo (o sujeito interno - o Self). Ele abomina esses humanos que não se dão valor, que se submetem à vontade de seus dominadores, que permitem a corrupção daquilo a que foram destinados. Creio que voce, assim como eu, sabe que o 'homo-sapiens' não veio ao planeta apenas para se reduzir à insignificância de um mero produtor e consumidor de mercadorias, enquanto corrompe a natureza de seu meio ambiente, sustentado pela ilusão de ser superior à toda forma de vida que o rodeia. A indignação do vampiro reside na fraqueza explicita desse ser incapaz de reação, embora nenhum outro ser vivo tenha perpetrado tamanha destruição e violência quanto 'nós' - sim! direta ou indiretamente, somos todos responsáveis por estes atos insanos. É a todos nós que o vampiro odeia. E nos odeia porque, no passado, matamos todos os grandes homens (Jesus,Gandhi, e tantos outros menos conhecidos) temendo ter que assumir nós mesmos, responsabilidades que estes assumiram por nós.

    ResponderExcluir