sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Crônica


A CIDADE
Considerações filosóficas de um errante urbano

Transito pela cidade. Seu nome é São Paulo. É só mais um nome numa estrutura comum a todas as de sua espécie espalhadas pelo mundo denunciando um alheamento desumano: essa relação intrínseca e controversa entre o homem e a sua criação realizando a alegoria de Frankenstein. A amargura me macula o paladar. Dói minha cabeça. Incomodam-me os olhos fustigados pela fuligem que impregna toda a atmosfera. Dói o orgulho ferido, dilacerado por constatações de impotência. Erro a esmo por entre calçadas e ruas, pontes e viadutos, me apoiando em postes e paredes, divisando ao passar o burburinho dos transeuntes, ambulâncias e viaturas; indiferente ao grito dos camelôs e ao clamor dos olhos apáticos dos mendigos e demais necessitados, aturdido pelo reluzir das limusines e ofuscado pelo reflexo do sol nas vitrines e nas fachadas das modernas torres envidraçadas.
Meus pensamentos estão confusos e atordoado erro sem rumo. A cidade é grande; imensa. Só não é maior que a angústia que assola aqueles que ela finge proteger. Tenho ganas de gritar bem alto para que todos os ouvidos reclusos no interior dessa massa de concreto, aço e vidro possam ouvir e diria então, nesse clamor, que estou bem vivo e consciente de minha independência e liberdade. Mas de que adiantaria, se todos esses ouvidos estão surdos?
Os muros, as paredes das residências, dos edifícios, dos estabelecimentos comerciais estão pichadas com inscrições ininteligíveis; meras marcas de tinta em caracteres grosseiros que nada representam além da tentativa vã de uma provocação desesperada. Nossas almas também estão pichadas. Ela também se encontra rabiscada por caracteres toscos que nada significam. Desvio minha atenção para os lados, à minha volta, no intuito de afastar minha atenção de meu interior. É terrível ver o descaso com que alguns tratam o ambiente em que vivem. Também é lastimável ver como nossas autoridades não têm competência para evitar que essa depredação do que é público e privado se efetive. Os edifícios formam, no seu conjunto, uma grande muralha, com objetivos bastante diferenciados daqueles que induziram a construção da Grande Muralha da China, mesmo que terminem produzindo na psique das pessoas que aqui vivem o efeito devastador dos bloqueios psicológicos. Sinto-me também bloqueado. O ser ou não ser de Hamlet exerce em minha psique tormento semelhante. No final, talvez eu também não tenha melhor sorte que o príncipe da Dinamarca. O horizonte diminui na cidade. O horizonte, na verdade, inexiste na cidade. O céu é somente um vislumbre para além desses arranha-céus. Massas densas de nuvens escuras nos recobrem, por isso não vemos mais o vôo majestoso dos pássaros; há muito nem ouvimos mais os seus cânticos; que outrora nos acordavam em manhãs ensolaradas. E pensar que em algum lugar, mesmo no interior dessa muralha, alguns pássaros ainda cumprem essa função. E aqui, hoje, sobre nossas preocupadas cabeças, rasgam esse mesmo vislumbre de céu, grandes e metálicos pássaros enviados pelo grande deus progresso. Quanta saudade dos deuses pagãos de outrora. Não eram como esses deuses modernos que ameaçam despencar sobre nossas cabeças a qualquer momento. Que angústia maldita me assola a alma quando da constatação dessas afirmações. Me questiono com veemência - constantemente -, se essas cidades, com suas dimensões incomensuráveis são de fato necessárias, ou se são apenas o produto, agora irrefutável, de históricas negligências? Talvez sejam apenas os produtos de egos gigantescos. A simples enunciação dessas conjecturas induz-me, inevitavelmente, a inferir a histórica imbecilidade humana (é inadmissível para mim conceber a inteligência de outra forma: avalia-se a inteligência pela sensatez com que é aplicada e neste momento histórico os resultados dessa aplicação revelam um contra-senso. Que estranho paradoxo esse).
Por todos os ângulos que se observe a cidade, deparamos-nos com ela a nos encarar como se fôssemos um intruso, um objeto desprezível, dispensável quando não útil aos seus propósitos; atônitos diante de sua frieza. Este ser frio que as vezes ironicamente reconforta permanece impassível às nossas expectativas. Evidentemente, a cidade não é um organismo vivo. É, no máximo, uma grande barreira de concreto armado a nos estorvar o caminho; a nos impor limites; a nos incutir desconforto psicológico; a nos remeter saudosamente a passados remotos que nunca pertenceram a nossa geração, mas que, em algum recôndito de nossas almas, revivem como se nos pertencessem de fato, nos reafirmando concretamente aquela suspeita de que esse sentimento nos habita muito antes mesmo de nossa consciência se prenunciar.
Lixo, poluição; o cinza quase absoluto reinando num ambiente que se pretende policromático. Fachadas inteiras a refletir exteriores como que a desejar retê-los, apossar-se dessas imagens, reivindicar sua propriedade para reafirmar sua função opressora. árvores pálidas, solitárias, -mesmo quando perfiladas nas raras alamedas que encontro em meu passeio - abandonadas, sobrevivem às margens de ruas e highways (artérias que, segundo a ótica com que se observa, rasgam o monstro ou o alimentam) -, sob a indiferença dos transeuntes: nós mesmos, os que estamos sempre apressados para nos darmos conta de suas presenças - sequer percebemos a passagem de nossa própria vida ao desenfrearmos essa insensata carreira rumo à sobrevivência, embora nem todos se sujeitem a essa empreitada desembestada; algumas dessas criaturas anseiam por uma resolução imediata.
Um indivíduo passa horas no topo de um edifício no centro da cidade chamando desesperadamente a atenção sobre si. Outro não se demoraria tanto assim. Mal chegam os bombeiros e o indivíduo se atira no vazio almejando um vôo magistral que fracassa com um baque surdo no chão da avenida sob os olhares curiosos e ávidos dos passantes que acorreram ao local. Terminado o espetáculo retomamos nossas atividades temporariamente interrompidas como se mudássemos de canal na televisão.
Retomo meus pensamentos: esta atitude faz-se estritamente necessária. A que antídoto recorrer se não sou capaz de suprimir assim tão facilmente de minha mente o ocorrido? Adotamos uma cartilha comum a todos, a qual, em seu conteúdo, traça os nossos comportamentos e objetivos e nem sequer questionamos a sua origem ou praticidade, apenas nos dispomos a adotar esses paradigmas como se, mais adiante, tivéssemos que prestar contas a alguém além de nós mesmos. A dor nos persegue desde a primeira consciência da perda da inocência. Deixamos de ser crianças - expectadores dessa peça teatral - para sermos os atores coadjuvantes que aguardam impotentes as deixas para a próxima atuação. Estamos cegos. Só vemos o que os protagonistas dessa encenação nos permitem ver. Eles determinam o nosso gosto. Decidem o que devemos sentir; o que e quem devemos amar. Enfim, comandam nossas vontades e com o nosso consentimento. Os descontentes com o enredo que deve representar que saltem fora do palco como o nosso suicida acima. Fomos historicamente domesticados até não desejarmos mais o estado anterior, a saber, a condição de animal selvagem detentor de todos os seus instintos: únicos bens que realmente possuíamos. Relegados agora a essa vida vegetativa e medíocre e tendo que conviver no silêncio e intimidade de nosso travesseiro com a angústia e o mal estar provocados por essa artificialidade imposta, sufocamos a dor, resignados.
Salvação é o que desejamos ardentemente. É o nosso anseio. Pelo menos o de alguns entre nós. A maioria permanece passiva, ciente da imutabilidade de sua condição. A liberdade não é para todos, afinal, o que fazer com tão preciosa dádiva se o cativeiro lhe é tão reconfortante? (A indignação que permeia essa reflexão é condição privilegiada dos espíritos insubordinados). Depositamos essa ansiedade transformada em esperança na confiança plena em idéias metafísicas na tentativa vã de minimizar nossa dor. Na aparência superficial é esse o resultado obtido. Adquirimos momentaneamente a alento que precisamos para continuar acreditando que aquele momento crucial em nossa consciência, que nos domina naquela instante solitário - a cabeça no travesseiro -, nos revelando nossa verdadeira identidade, não passa de um lapso em nossas convicções, uma fraqueza incidental na confecção dos meandros de nossa trama cotidiana.
Enquanto em nosso interior se deflagram forças dessa natureza, convencidos de que isso são conflitos corriqueiros em nossa psique, reestruturamos continuamente o que convencionamos denominar realidade e continuamos a erguer muros, tão altos e tão forte, que nós mesmo (como se fosse realmente isso que quiséssemos), não encontramos mais força e justificativa para derrubá-los. Leis, dogmas, regras, objetivos comuns, ambições coletivas e particulares, normas, conceitos e preconceitos, ética e moral, crença, ceticismo, são alguns dos meandros dessa teia magistral. Meus problemas particulares se me apresentam menores diante dessas constatações. Mas, essas mesmas constatações não são, efetivamente, a configuração de meus problemas particulares? Toda a pretensa ordem instituída contrasta com os resultados obtidos ao longo de sua elaboração. A cidade abriga, mas também refuta. Seus braços acolhedores também esmagam. A mesma porta que se abre também pode privar a liberdade. Toda idéia de um mundo maravilhoso a substituir aquele arcaico, primitivo e selvagem, só se revelou capaz de produzir indivíduos psicologicamente enfermos. Não pensamos mais com nossa própria mente (nossa vontade se encontra subjugada); ela agora é reprodutora de idéias alheias, que, vez em quando, segundo necessidades ou modismos, são substituídas por outras que surgem como que do nada a cumprirem a tarefa a si designadas: a manutenção do poder alheio sobre nossa existência. Segundo essas ideologias, nenhum indivíduo deve ser inteiramente senhor de sua própria vontade; em primeiro lugar está a sujeição à vontade de seus senhores.
Ao final do dia permito a intromissão de uma interferência mediadora em meus pensamentos. Penso que, será que tudo o que existe por aqui, no interior dessa muralha, é inteiramente nocivo à existência humana? Sei que uma existência plena está fora de cogitação (mas de que adianta uma vida que não seja plena?). Também a cidade e toda a idéia de conjunto que ela representa não apresenta aspectos positivos, reconstituindo a natureza ambivalente do homem que a construiu? Ao se permitir seduzir isoladamente por um dos dois aspectos pertinentes à nossa psique, conferimos à nossa atitude e pensamentos a fragilidade decorrente do desequilíbrio dessas forças. Mas como conciliar essas potências sem entrar em conflito com valores tidos como virtudes? Talvez a solução tenha sido a concessão. Em troca de um ambiente aparentemente menos hostil que o primitivo e selvagem ambiente arcaico em que habitou por milhões de anos, este indivíduo aceitou a domesticação (apresentada na belíssima embalagem da educação e do progresso) como a forma ideal desse equilíbrio. Mas, sem esta opção, o que nos restaria? Um ambiente povoado por poucos indivíduos onde o abrigo ainda seria uma caverna e a refeição do dia um animal nas pastagens? Ou talvez houvesse uma outra solução que contraria essa sugestão e a que impera? Qual seria? Uma opção onde nenhum individuo subjugaria outro em nome de nenhuma ideologia. Nenhum imporia sua vontade a outro nem o obrigaria, à força, a executar o que não quisesse... mas isso é assunto para um tratado de utopia. Um ambiente onde esta condição se afirmasse como regra seria um ambiente povoado de super-homens. E nós estamos longe dessa condição, pois se o contrário fosse uma possibilidade, esse super-homem já teria aflorado e posto fim ao subjugo.
Iniciei esta caminhada a esmo pela cidade imbuído de dúvidas cruciais a respeito de meu bem mais precioso: minha identidade. Em que medida sou o senhor de meus atos e de minhas vontades? Até que ponto esse consenso denominado comum interfere de forma significativamente transgressora em meus juízos de valores? Do quê, em minhas atitudes e pensamentos, é genuínamente meu? Creio que continuo portador dessas dúvidas. Sou parte integrante da humanidade e, óbvio, devo refletir suas vontades e aspirações em alguma medida. Caso contrário, seria algo como um alienígena, um sujeito completamente fora de contexto. Então, por quê essa permanente inquietação a me exigir uma reflexão a respeito de minha condição como membro dessa espécie? Creio que o objeto dessas reflexões seja exatamente uma proximidade com minhas raízes arcaicas no sentido de me descobrir como indivíduo possuidor de características próprias e que a semelhança e a diferença entre meus iguais obedecem rigorosa medida.
Esses pensamentos me permitem antever entre as brumas dessa tarde de inverno uma noite mais aquecida, onde, juntamente com a cidade - essa mesma, acima considerada fria, cruel e desumana, pois de concreto aço e vidro, finalmente superada em seu aspecto maniqueísta, - vivênciar sua oferta com todo o meu potencial.
Ao se aproximar a noite o semblante dos transeuntes não me parecem mais traduzir uma insatisfação crônica, e sim revelar apenas o enfado esperado ao final de mais um dia de labor. Lá vai o cidadão rumo ao conforto de seu lar. Anseia por chegar e neste momento não se importa se seu lar é uma residência nos jardins ou um barraco de embalagens de papelão na periferia; quer chegar e ser tocado de novo pelo calor de sua família - único porto seguro que possui. E o conceito de comum finalmente se dilui nas distintas personalidades que habitam esses corpos, afirmando-se, justamente, naquilo que consideram suas vontades, anseios, preferências e expectativas. O dia seguinte fatalmente trará de volta o fel que macula seu paladar.
Também me retiro. As luzes já acesas nessa noite que cai realçam e multiplicam as cores não percebidas durante os momentos mais críticos desse passeio e parecem iluminar a paisagem esperançosa que se esboçou em meu horizonte interno. Um agradável calor emana do asfalto e me reconforta o espírito. Fico deveras feliz por não alimentar por mais tempo a inquietação que me consumia as entranhas.
Boa noite São Paulo, que o deuses estejam contigo e bem abrigados, pois deles dependem nossa bem aventurança.

Gilberto Lins
São Paulo, setembro de 1.999.
(redação revista em outubro de 2.009)


Nenhum comentário:

Postar um comentário